Pegue o cigarro, pegue o seu jeans

Anellise Ramos
3 min readMay 30, 2023

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Perdeu as contas de quantas vezes escutou aquela mesma música. Era dessas, do tipo que quando gostava repetia, repetia, repetia até decorar cada letra, cada pausa, cada nota. Repetia até gravar, até cansar, até que outra fosse promovida a nova favorita e pudesse recomeçar sua particular obsessão.

Estranhou quando ele enviou uma música. Entre tantas mensagens, talvez nem tantas assim nos últimos dias, mas entre conversas, emojis, figurinhas, era a primeira vez que lhe enviava uma música. Devia querer dizer alguma coisa, que talvez a relação entre eles estava mudando de patamar, algo que suspeitava, ou ao menos desejava que estivesse mesmo próximo de acontecer. Ninguém manda música por acaso, só precisava decifrar o recado por trás dela. Não reconheceu de cara pelo nome, do autor sabia quase nada. Não chegava a ser um estranho, tampouco era o cantor favorito, mas não tardaria em descobrir do que se tratava.

Você tem quilos de tédio, eu ando tão distraído… não era bem o que esperava de uma canção romântica, vasculhou mentalmente e o mais rápido que conseguiu as possíveis conversas ou episódios que pudessem ter passado a impressão de chata, aborrecida, sem encontrar nada próximo a QUILOS DE TÉDIO. Que ele estava distraído, nem precisava dizer, a demora nas reações, ultimamente até a falta de respostas, que antes eram quase imediatas, davam conta de sinalizar. Devorou a letra na sequência até o fim, num misto de leitura dinâmica com ansiedade suficientes para apaziguar o susto inicial.

Vou te tirar daqui, a gente pode ir pra outro planeta, um abrigo… ufa! É claro que fugiria com ele, prá qualquer lugar, a qualquer hora! Enfim uma posição, uma proposta, um passo…as mensagens eram sempre tão dúbias, às vezes parecia claro o interesse e tinha a impressão de que sairiam dali direto pro altar, mas em outras tantas parecia conversas de bar entre conhecidos enquanto viam o tempo passar. Não por ela que já não conseguia disfarçar. E nem tentava. Foi quem sugeriu que evoluíssem pras ligações e apesar de já estar acostumada com a voz nos áudios de mensagens, era diferente quando se falavam por telefone, notar o que empolgava, o que constrangia, a velocidade da voz, a entonação, conhecer a gargalhada espontânea, reconhecer os sinais de emoção.

Você também se sente assim, a gente é tão parecido…muito! Então ele também tinha notado? A cada livro que o outro também tinha lido, a cada show em comum que não saía da memória, ele que também gostava de Pets, ela que também amava viajar. Ouvia e repetia e cantava de novo e mais uma vez. Emprestou a cada verso a mesma fantasia que nutria em relação àquele homem tão estranho e tão íntimo ao mesmo tempo. Sim, se isso era um pedido de namoro, aceitava. Se era um convite pra morar junto, topava. Casamento? Só precisaria de um tempo pra cuidar dos detalhes.

Então tudo não tinha passado de uma loucura dela, insegurança, ele não estava se afastando, não estava ausente naquelas últimas semanas. Pode ter ficado confuso em algum momento, no máximo, mas agora tudo estava às claras, o que sentiam um pelo outro. Precisava decidir como responder, texto, áudio, outra música… o trecho de algum livro especial talvez caísse bem. Mas precisava ser claro. Ele não poderia ter dúvidas quanto à resposta. Leu a letra pela enésima vez, tentou encontrar alguma entrevista que contasse da origem, quando foi escrita, pra quem, sabia que seria interessante ter esse tipo de história na manga pra quando precisasse contar como tudo começou entre eles, quem sabe talvez numa boda de pratas, trazendo detalhes que os filhos e netos desconhecessem até então.

Quando enfim se decidiu, respirou fundo como fazia jus uma resposta capaz de mudar toda sua vida. Preparou um rascunho, apagou, refez, corrigiu. Cogitou ligar ao invés de mandar por escrito. Demorou até reconhecer que estava bom e quando finalmente parecia não haver nada mais a mexer, riu sozinha emocionada. Procurou o nome dele e o link da música pra responder.

Mensagem apagada.

Desafio Coletivo Escreviventes 04/2023

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Anellise Ramos

Escritora em processo de descoberta da própria voz e das boas histórias. Acredito que a inspiração está ao alcance das mãos. Vivo por aí tateando o mundo.